Frei Angélico e a Missão Cururu

 
Missã Cururu
Um dos primeiros registros fotográficos da Missão Cururu. Arquivo: Colégio Santa Clara

Por Célio Simões 

O Rio Cururu é um vistoso afluente pelo lado direito do Rio Tapajós, bem longe de Santarém, no telúrico Estado do Pará, tendo seu estuário um pouco abaixo da intercessão dos rios Juruena e Teles Pires, também conhecido como Rio São Manuel, que unidos dão corpo e volume ao próprio Tapajós.

No início do século passado, quando as várias cheias, com destaque para a de 1953, ainda não haviam arrasado as criações de gado nas várzeas, um grupo de três padres da ordem dos franciscanos resolveram ali fundar o local que ficou conhecido como “A MISSÃO DE SÃO FRANCISCO DO CURURU”, com o objetivo de catequizar os índios Mundurucus, até então seus únicos e arredios habitantes.

Frei Hugo, Frei Luís e Frei Crisóstomo saíram de Santarém no mês de Maio/1911, subindo o rio ao sabor da viração e utilizando remos quando as velas se tornavam um estorvo no deslizar da pesada igarité.

Muito além do que hoje é São Luís do Tapajós, no ponto onde atualmente se pretende a construção de gigantesca hidrelétrica, e guiando-se por indicação dos rarefeitos ribeirinhos, conseguiram os religiosos atingir o Rio Cururú e por ele continuaram até alcançar a aldeia dos Mundurucús, ao final do mês de Julho, quando a brancura das praias sem fim já estreitava o leito navegável daquele incrível e deslumbrante mundo novo.

Eles mesmos, conquanto exaustos, desembarcaram a monumental bagagem no barranco, para depois ser levada para um local quatro quilômetros distante, desta vez com a indispensável ajuda dos índios, inicialmente renitentes em colaborar, porém aos poucos cedendo aos apelos daqueles “irmãos” trajados de batina marrom e cordão amarrado na cintura.

Tão logo deixou os viajantes em terra firme a precária embarcação voltou, com a vantagem da navegação a favor da correnteza. É que Frei Crisóstomo contraíra a terrível malária e sua saúde inspirava cuidados.
Foram tempos inicialmente difíceis para os franciscanos. Os Mundurucus não falavam português, os padres não falavam o dialeto indígena, o isolamento do mundo civilizado era gritante (todos eram alemães) e a comida era baseada na caça, na grande oferta de peixes, capturados pelos nativos do jeito mais primitivo possível – à base do arco e flecha.

Não aguentaram. Em dezembro regressaram a Santarém, apetrecharam-se melhor, recuperaram-se das mazelas sofridas durante o longo tempo passado no mato e ao fim do primeiro trimestre do ano seguinte (1912) retornaram repetindo o percurso da viagem inaugural, levando porém em sua companhia três religiosas, trajadas de hábito branco e escapulário azul, que iriam se incumbir da orientação espiritual das mulheres da tribo.

Sempre que tomo conhecimento dos primórdios da cristianização dos índios da Amazônia, como fizeram nossos três heróis aqui identificados, assim Frei Protásio Frikel em relação à missão dos índios Tiriós, município de Óbidos, já na fronteira com o Suriname, fico me questionando da validade dessa iniciativa, por mais bem intencionada que tenha sido, porquanto acabou por introduzir nos silvícolas aculturados outras crenças, costumes e tradições que não a deles, herdadas desde tempos imemoriais que remontam à fase anterior a era do descobrimento.

Por volta de 1920, a missão do Cururu foi definitivamente transferida para o local denominado “Terra Preta”, mais três quilômetros abaixo do primeiro ponto de chegada e na margem oposta do rio, pela imprestabilidade do primeiro, baixo e sujeito a constantes alagamentos a cada inverno. Mais de mil índios Mundurucus acabaram se deslocando o mais próximo possível da nova localidade, onde atuavam com desenvoltura os padres e as três irmãs que chegaram na segunda viagem.

O pequeno e primitivo núcleo residencial foi aos poucos prosperando, novos sacerdotes periodicamente substituíram os mais antigos e a evolução do local se fazia a olhos vistos, pois das antigas barracas de barro e palha surgiram duas espaçosas casas (uma para os padres; a outra para as freiras), tendo o visionário Dom Floriano, então Bispo de Santarém, doado todas as telhas para a cobertura das mesmas.

Por volta de 1953, chegaram ao Cururu os missionários Frei Plácido, Frei Edmundo, Frei Lamberto e Frei Angélico Mielert. Com o devido respeito aos demais, deste último posso atestar, por tê-lo conhecido pessoalmente, ser ele um autêntico religioso a serviço de sua magnífica vocação sacerdotal.

Frei Angélico era um sujeito alto e forte, não usava tonsura e cultivava uma barba negra que o fazia parecer um guerreiro sarraceno. Assim como Frei Rogério Voges, que na minha opinião edificou um dos mais belos templos da Amazônia – a Igreja de São Raimundo em Santarém – Frei Angélico resolveu construir com a ajuda dos índios uma capela para os ofícios religiosos, afora dois colégios (para meninos e meninas) na missão do Cururu.

Com benfeitores na distante Alemanha adquiriu uma turbina, instalada por outro padre (Frei Caetano), após mandar cavar um canal de mais de 3 km para obter a necessária inclinação no nível da água, conseguindo que o pequeno engenho fornecesse energia elétrica diuturnamente, movimentando uma minúscula serraria, uma descascadeira de arroz e outra de café.

Com ele, vários índios aprenderam a arte da carpintaria e os conhecimentos necessários à criação de gado. Das poucas matrizes adquiridas em São Luiz do Tapajós, para além da cidade de Itaituba, chegou a ter quase 200 reses, independente de caprinos, suínos, patos e galhinhas para suprir a época de escassez de peixes, pois a caça ficara por ele proibida visando, já naquela remota época, à preservação das espécies.

Seu largo tirocínio o levou aos experimentos com a juta muito antes das lavouras arrefecerem a produção, mais de vinte anos após sua chegada à missão do Cururu, faturando dividendos que permitiam a autonomia econômica do minúsculo povoado; e para o sustento de seus moradores, mandara também plantar cacau e uma infinidade de árvores frutíferas, para que não faltasse o alimento tão necessário ao sustento daquela gente.

Sua atividade era incessante na perseguição de seus objetivos. Bons tempos aqueles, em que os servos de Deus dedicavam-se à cura de almas, sacrificando-se nos seus difíceis labores nas vastidões amazônicas, guardando propositadamente boa distância da política partidária merecendo assim, o máximo respeito e admiração.

Nas várias oportunidades que teve para regressar da aldeia Frei Angélico recusou a benesse. Acostumara-se àquele tipo de vida, sentindo-se útil aos indígenas e meio deslocado nos ambientes urbanos, logo ele, um europeu por origem e criação.

Amigo de meu pai, nas vezes que ia a Óbidos visitar o Bispo Dom Floriano, dava uma esticada até nossa fazenda, para um dedo de prosa. Chegava abraçando todo mundo e não recusava um café passado na hora, desde que não fosse servido em xícara pequena e sim, num alentado caneco de esmalte, a uma temperatura fumegante. Aquele caneco era guardado separado num armário e somente por ele era utilizado, pois minha mãe não permitia que outra pessoa dele se apossasse para qualquer fim.

Na missão do Cururu aquele alemão aprendeu a cavalgar com habilidade e a imitar com perfeição o grito de guerra dos Mundurucús, que fazia tão somente para demonstrar seus dotes à pequena platéia que o ouvia como que hipnotizada, sorvendo as tropelias que o tornaram famoso naquelas lonjuras – um pequeno afluente de um grande afluente do monumental Rio Amazonas.

A última notícia que tive de Frei Angélico foi seu decisivo contributo para a fundação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) em 21 de Abril de 1972 em Brasília, atuante órgão da CNBB voltado à proteção indígena, para o qual levou toda sua experiência linguística e etnográfica dos povos da floresta com quem muito conviveu, a ponto de recusar-se a retornar para outros locais ditos mais civilizados.

Passei alguns dias em Óbidos em julho de 2010. Enquanto conversava com meu estimado amigo José Benedito de Aquino, hoje próspero empresário, vislumbrava as “rabetas”, nome atual dos antigos “motores de popa” chegando e saindo do porto com grande desenvoltura, desafiando o remanso no cortejo das malhadeiras que capturavam os cardumes em frente à cidade em incessantes surtidas de procriação.

Fiquei pensando sobre o que diriam os missionários se as vissem, aqueles que em 1911 consumiram 60 dias para chegar ao Rio Cururú partindo de Santarém, um tempo inaceitavelmente longo na fase que a humanidade ora atravessa. Frei Angélico, o irriquieto missionário europeu com espírito sertanista, tenho certeza estaria admirado com a eficácia da engenhoca e compraria uma para seu uso pessoal, assim libertando-se dos humores do vento e da ditadura das canoas à vela.

Fonte: Jeso Carneiro

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