Pé na praia: Alquimia amazônica

Thomas Fischermann
Por Thomas Fischermann
Num lugarejo da Amazônia, um negociante de ouro reconhece a olho nu de que garimpo da região o elemento vem. Após repassado a intermediários, o ouro de origem duvidosa é revendido em cidades grandes e no exterior.
O negociante de ouro se irritara terrivelmente ao ver a polícia chegar. Tudo acontecera na penumbra da madrugada, e já fazia algum tempo. Durante minha estadia no lugarejo de Jacareacanga, na rodovia Transamazônica, lembrou-se de tudo como se fosse ontem.
"Você é um bandido", os policiais teriam dito a ele. Depois o teriam levado para a cadeia em uma cidade que ficava a 900 quilômetros de distância, junto com todos os seus livros de anotação, pastas de arquivos – e o ouro.
"Eram 22 quilos de ouro", lamentou-se. Eu não tinha certeza se podia acreditar nele ou não. No preço de mercado atual, isso teria um valor de quase 800 mil euros. "Até hoje não os recuperei", disse.
O negociante de ouro era um homem honesto, com cabelos grisalhos e cacheados. Naquela manhã, estava sentado em sua loja na rua principal e tocava os negócios como sempre. Um outro homem, magro e com uma barbicha, entrou, tirando um pedaço de papel alumínio da bolsa. Suas mãos ainda tremiam nervosas, enquanto ele sacudia pequenos, minúsculos grãos de ouro sobre um prato de balança.
"1,01 grama", disse o negociante de ouro. E colocou nas mãos do visitante algumas notas de dinheiro. Este saiu sem dizer nenhuma palavra e desapareceu após subir na carroceria de uma caminhonete, que partiu cantando os pneus.
"Não gosto de aceitar esse tipo de ouro", disse o negociante. Chamava-o de "ouro em flagrante", ou seja, ouro em estado natural, que tinha acabado de ser lavado do barranco de terra ou do rio.
Se o ouro já estivesse derretido, então, ele poderia argumentar que era nada mais que um negociante de ouro, que teria sido comprado no mercado de metais preciosos. Com ouro em estado natural como grãos ou até mesmo em forma de nuggets, ele não teria desculpa caso a polícia aparecesse novamente. Só poderia ter vindo dos garimpos da região, e isso era ilegal. Nenhum garimpo da área está oficialmente registrado em um órgão do governo. No Brasil, não é permitido simplesmente adentrar uma floresta e procurar por metais escavando no solo.
Por outro lado, os grãos de ouro oferecem uma vantagem ao negociante. Ele me explicou que reconhece a olho nu – só pelo tamanho do grão, pela cor e pelo brilho – de que garimpo vem. Algo importante, pois a pureza do ouro varia de acordo com sua origem. Sem isso, ele teria que fazer primeiro uma análise química.
"Recém-chegados mentem para mim às vezes, mas nunca caio nesses truques", disse. O ouro que ele acabara de comprar vinha de um garimpo chamado "quilômetro 70", localizado numa picada nas profundezas da floresta, guardado por homens armados chamados de guachebas, que não deixam passar ninguém sem autorização. 
O negociante de ouro se via como um craque de um negócio altamente especializado, e como um negociante de um comércio honrado. "Sou um peixe pequeno, e aqui todos sabem que eu não exploro as pessoas", disse, alegando ter uma margem de lucro mínima.
De duas em duas semanas, o negociante de ouro disse fazer uma viagem de um dia e levar seus ganhos para a cidade grande mais próxima, Itaituba, onde ficam negociantes intermediários maiores. segundo ele, estes trabalham com uma margem de lucro mais substanciosa, mas também prestam um serviço complementar valioso.
Em Itaituba, os comerciantes de ouro dominam o negócio de transformar o elemento de origem duvidosa em barras e moedas bonitas e ter seus devidos certificados de procedências reconhecidos pelo governo. Tal ouro pode ser vendido nas cidades grandes e até mesmo no exterior. Alquimia moderna amazônica.
"Nunca fiz nada desse tipo. Vivo aqui sem ser perturbado há anos. E então vem a polícia e me prende por fazer o meu trabalho", disse o negociante de ouro, sem saber se veria novamente o ouro que os funcionários públicos confiscaram. Talvez tenha sido uma troca para que eles o deixem em paz agora?
"Aqui tem três negociantes de ouro", contou. "Todos sabemos agora que podemos ser presos a qualquer hora"
Jacareacanga foi fundada por garimpeiros, e, segundo o negociante, o ouro é a base da sociedade, uma tradição antiga. Ali não há nada além do ouro – talvez um pouco de comércio de madeira e "todos os índios que vivem da ajuda do Estado", disse. Segundo ele, em Jacareacanga não há assaltos. Os garimpeiros não tolerariam isso, nenhum ladrão nas ruas. Entre os garimpeiros as pessoas são fuziladas por isso. "É claro que pessoas são assassinadas por aqui, isso acontece", reconheceu.
De uma forma ou de outra: a polícia de uma cidade distante não tem o direito de se meter na vida dos outros, disse o negociante de ouro, afirmando que ele e seus colegas não queriam mais nada além de serem deixados em paz. E me perguntou: como um trabalho duro como esse pode ser pecado?
Thomas Fischermann é correspondente para o jornal alemão die ZEIT na América do Sul. 

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