Jacareacanga: Índios tentam fechar megagarimpo ilegal que polui rio no Pará
Por Fabiano Maisonnave/Folha
Os 225,8 km de água
enlameada que cruzam a floresta amazônica anunciam a tragédia adiante:
megagarimpos ilegais encravados na Terra Indígena Munduruku e na Floresta
Nacional do Crepori, no sudoeste do Pará. Mas, ao contrário do rio Doce, a
destruição do remoto rio das Tropas acontece de forma oculta —menos para os
índios.
Cansados de esperar
por uma intervenção do Estado, guerreiros e lideranças da etnia, incluindo o
cacique-geral, Arnaldo Kaba, organizaram uma expedição para expulsar os
garimpeiros não indígenas do local. Em seis lanchas, viajaram dezenas de
guerreiros armados com flechas e espingardas de caça, mulheres, crianças e
idosos. A reportagem da Folha foi autorizada a acompanhar a
viagem.
A iniciativa foi
precedida por um duro comunicado do Movimento Ipereg Ayu ("povo que
sabe se defender"). Contrário a todo tipo de garimpo, tem forte participação de mulheres e
é responsável por protestos ousados, como a tomada da usina Belo Monte, em
2013. Ações como essa renderam aos mundurucus, com cerca de 14 mil pessoas, a
reputação de etnia aguerrida e combativa.
Com "muita dor
e vergonha", o movimento diz que a aldeia PV, cooptada e cercada pelo
garimpo, "não existe mais". Prometeu expulsar os garimpeiros pariwat
(brancos) e destruir seu maquinário. E acusa o ICMBio (Instituto Chico Mendes
de Conservação da Biodiversidade), a Funai (Fundação Nacional do Índio) e o
Ministério Público Federal de "ficar no escritório ou fazendo
reunião".
A viagem de ida
tomou dois dias de barco desde Jacareacanga (1.160 km em linha reta de Belém),
da foz do rio das Tropas, que deságua no Tapajós, até a sua cabeceira. Antes de
águas transparentes, o rio ficou barrento em toda a extensão.
No papel, o rio
deveria estar protegido desde as nascentes —com a exceção de um pequeno trecho
na foz, o curso d'água corre ao longo da divisa entre o território mundurucu e
a Flona Crepori.
Durante paradas em
algumas das cerca de 20 aldeias às margens do Tropas, os mesmos relatos de que
o rio deixou de ser fonte de água e alimento. "Acabou o peixe. Estamos há
quatro anos sem usar a água do rio", disse a vice-cacique Iraneide
Saw, 29, por meio de uma intérprete. Sua aldeia, a Caroçal, é agora abastecida
por um poço artesiano.
Ao mesmo tempo,
muitos mundurucus dessas aldeias, sobretudo os homens, trabalham ou já passaram
por garimpos de ouro, há várias décadas a principal atividade econômica da
região do Tapajós.
É comum a fala de
que a extração do ouro deveria ser feita pelos próprios mundurucus. Na sua
grande maioria, eles não usam PCs (escavadeiras), que têm potencial destruidor
várias vezes maior do que as máquinas acopladas a mangueiras de água, chamadas
de "tatuzão".
A parte mais
crítica da viagem começou a 7 km da aldeia PV, em linha reta. A partir dali,
onde há um grande garimpo dentro da Flona do Crepori, a expedição subiu pelo
igarapé Massaranduba, que corre apenas dentro da terra indígena e é o principal
afluente do rio das Tropas.
Por cerca de 2h30,
os pilotos dos barcos sofreram para subir o leito desviado e assoreado em meio
a toneladas de terra revirada. Não há nenhuma vida aquática ali, apenas um
jorro contínuo de lama. Em um trecho, foi preciso desembarcar para que os
barcos vencessem um desnível provocado pela garimpagem.
Depois de uma
viagem em silêncio pela área devastada, o grupo chegou à aldeia no meio da
tarde do último dia 25.
Os mundurucus
pareciam em minoria: vários garimpeiros circulavam pelas casas a pé, em motos e
em quadriciclos. "Parece cidade", disse Ana Poxo, uma das
lideranças da expedição.
ESCOLA INVADIDA
Única presença
visível do Estado, a escola municipal indígena virou depósito e dormitório de
garimpeiros. A lousa serve de mural de recado para os invasores.
Por conta das
chegada dos guerreiros, os garimpeiros retiraram diversas caixas do prédio da
escola, em péssimo estado, carregadas com o auxílio de mundurucus da PV, entre
eles uma criança não maior do que 7 anos.
A poucos metros das
casas de madeira, uma extensa pista recebeu sete aviões apenas naquela tarde. É
uma ponte aérea entre o garimpo e o Creporizão, distrito de Itaituba (PA) e
fonte de abastecimento de comida, combustível, bebida alcoólica e insumos para
o garimpo.
Ironicamente, a
aldeia PV, abreviação de Posto de Vigilância, foi criada em 1996 justamente
para evitar a entrada de garimpeiros brancos. "Isso aconteceu por causa do
cacique [Osvaldo Wuaru]. Ele autorizou, e o filho dele [João] acelerou",
disse o cacique-geral. "O índio é fraco para vigiar."
Durante a tarde e
na manhã do dia seguinte, os cerca de 40 guerreiros vasculharam comércios,
bares em busca de drogas e bebidas alcoólicas. No barraco onde funciona o
prostíbulo, foram apreendidas latas de cerveja, mas as prostitutas haviam
deixado o local dois dias antes, segundo garimpeiros.
Os guerreiros
também abordavam garimpeiros nãoindígenas para convocar para uma reunião.
Alguns estavam protegidos por mundurucus prógarimpo —um deles circulava sobre
um quadriciclo escoltado por quatro guerreiros armados com flechas, um deles
pré-adolescente.
"NEM BORBOLETA"
"A água está
muito grossa, não tem mais peixe, não tem mais caça", afirmou Kaba a
dezenas de garimpeiros que lotaram o centro de reuniões da aldeia. "Não vi
nem borboleta atravessando o rio das Tropas."
O cacique-geral
deixou claro: "Os senhores têm de sair". Os garimpeiros
"convidados" por mundurucus, explicou, poderão se retirar após
negociar um prazo.
Falando em seguida,
o cacique da aldeia PV, Osvaldo Wuaru, foi menos enfático. Em vez de reforçar a
ordem de expulsão, decidida em reuniões preparatórias, falou sobre promessas
não cumpridas, principalmente um poço artesiano para substituir a água barrenta
consumida pelos mundurucus.
Foi a deixa para os
garimpeiros renovarem promessas de ajuda. Um deles se levantou e entregou 20 gramas
de ouro enquanto Wuaru falava. Ele embolsou o pacotinho de papel.
"Às vezes, a
gente tira 15, 20 gramas para gastar com cachaça e prostituição. Isso eu digo
vivenciado", disse o garimpeiro Barbudo. "E não temos coragem pra dar
pro capitão Osvaldo 5 gramas, 10 gramas de ajuda para ele? Temos de
conscientizar que estamos dormindo, comendo e bebendo dentro da casa do capitão
Osvaldo."
No final, os
guerreiros mundurucus separaram os "donos de máquina" dos demais
garimpeiros. Contaram 50, dos quais 39 nãoindígenas, obrigados a dar o nome, o
número de máquinas e a cidade de origem.
Entre os mais
poderosos está Eduardo Martins, que também faz as vezes de pastor no garimpo.
Com três PCs na área, avaliadas em até R$ 600 mil, ele prometeu fazer dois
tanques de peixe, pagar o poço artesiano e até trazer deputado para falar com
os mundurucus.
Entre os
mundurucus, o mais influente é Valmar Kaba, um dos pouquíssimos indígenas
que enriqueceram com o garimpo. Dono de dois PCs, segundo relatos, ele foi
representado por um nãoindígena.
Dias depois, a
reportagem o procurou em sua casa, em Jacareacanga. De alvenaria, amplo jardim
e muros altos, contrastava com a aglomeração de mundurucus esperando
atendimento médico diante da Casai (Casa da Saúde Indígena), que fica ao lado.
Valmar Kaba,
mundurucu por parte de mãe, atendeu a porta usando dois colares, pulseira e
relógio de ouro. Ele alegou cansaço e disse que falaria mais tarde por
telefone, o que não ocorreu. No WhatsApp, ele aparece ao lado de dois PMs.
Os guerreiros
deixaram o garimpo na manhã do último dia 27, para alívio dos garimpeiros. Mas
a promessa é voltar dentro de 30 dias, desta vez para expulsar os invasores:
"Aí virão todas as aldeias. É isso que estamos avisando".
OUTRO LADO
Responsável por proteger
os direitos dos povos indígenas, a Funai foi o único dos sete órgãos públicos
procurados que não respondeu às perguntas enviadas pela Folha. Já o
ICMBio, que faz a gestão da Flona do Crepori diz que não há descontrole do
garimpo na região nem alteração na fauna de peixe do rio das Tropas.
O questionamento,
submetido na última terça-feira (30) à Funai, inclui o total da população
mundurucu atingida pela contaminação do rio das Tropas e quais foram ações do
órgão indigenista contra o garimpo nos últimos dois anos.
Atualmente, a Funai
mantém apenas um funcionário para atender a toda a TI (terra
indígena) Munduruku, de 2,4 milhões de hectares (pouco mais do que 15
municípios de São Paulo). Lotado em Jacareacanga (PA), ele não acompanhou a
expedição dos guerreiros mundurucus contra os garimpeiros, na semana passada,
alegando falta de segurança.
Alvo de
desmantelamento contínuo nos últimos anos, a Funai mantinha cinco chefes de
posto, espalhados pela terra indígena, incluindo o rio das Tropas, hoje
contaminado pelo garimpo. Em 2010, durante o segundo governo Lula (PT), uma
reestruturação eliminou esses cargos.
A Funai é vista com
desconfiança pelos mundurucus e até por outras instituições do Estado. Em
reunião na última quinta-feira (1°) sobre o assunto no Ministério Público
Federal em Santarém, o representante do órgão foi impedido de participar da
primeira parte, que contou com Ibama, Polícia Federal e ICMBio. Entrou apenas
no diálogo com lideranças indígenas.
Após a reunião, o
procurador Paulo de Tarso de Oliveira pediu à Justiça Federal que "obrigue
o Ibama e o ICMBio a fiscalizar em até 30 dias o garimpo ilegal na TI
Munduruku". "Caso a decisão judicial não seja cumprida, o MPF quer
que o Ibama e o ICMBio sejam multados em R$ 10 mil por dia de desobediência à
Justiça", afirmou.
Em resposta por
escrito, o ICMBio admitiu que há 306 hectares desmatados pelo garimpo na Flona
Crepori, "mas entendemos que a situação não é de descontrole".
"Não temos
estudos sobre a contaminação de garimpo ou assoreamento no rio das Tropas, mas
a situação de deterioração não é intensa, não havendo relatos de diminuição da
população de peixes e com as comunidades mantendo as atividades de pesca sem
alterações", afirmou.
Sobre atividades de
fiscalização, o órgão diz ter feito apenas dois sobrevoos no ano passado, mas
planeja ações "que devem ter impacto significativo na atividade
garimpeira".
A Flona do Crepori
é administrada pelo escritório de Itaituba, que dispõe de apenas 26 servidores
para cuidar de 12 unidades de conservação, num total de 8,9 milhões de ha —área
um pouco menor do que Portugal.
Encarregado de
medir a qualidade da água em rios estaduais, a Secretaria de Meio Ambiente e
Sustentabilidade do Pará afirmou que só tem capacidade de monitorar a qualidade
da água na Região Metropolitana de Belém.
A ANA (Agência
Nacional de Águas) afirmou que, em sua base de dados, não há nenhum dado de
monitoramento da qualidade da água no rio das Tropas realizado pelo Pará.
O Ibama realizou
uma operação contra outro garimpo, localizado no igarapé Água Branca, afluente
do Tropas. A ação foi abortada após um mundurucu ligado ao garimpo investir
contra agentes do órgão ambiental.
Em nota, o Ibama
afirma que "há necessidade de intervenção urgente da Funai, do MPF e da PF
para prisão dos criminosos e desintrusão da área".
"A solução do
problema socioambiental na região, assim como em outras áreas protegidas na
Amazônia, pressupõe medidas de responsabilização criminal dos envolvidos,
sobretudo dos financiadores da atividade ilegal", afirma.
Questionada sobre o
uso intenso de pistas clandestinas na região, a FAB (Força Aérea Brasileira)
diz que o Destacamento de Controle do Espaço Aéreo, em Jacareacanga (PA),
"não tem a competência de fiscalizar pistas clandestinas", tarefa da
Anac (Agência Nacional de Aviação Civil).
A Anac informou
que, "em relação às possíveis operações de garimpo na região, está
recebendo essas informações como denúncia", mas afirmou que não tem como
fechar pistas clandestinas de garimpo.
"O poder de
polícia desta agência visando à interdição de um aeródromo restringe-se àquelas
infraestruturas aeroportuárias cadastradas, não alcançando pistas clandestinas,
uma vez que não há informações dos responsáveis por estas pistas no banco de
dados", disse, em nota.
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